sábado, outubro 21, 2006

Divagações

Chove. Gotas grossas e compactas separam-se das nuvens , soltando-se levemente e caindo , serena mas rapidamente , cortando o céu relampejante em direcção ao solo...
Desabam bruscamente , ricocheteando nos passeios e ruas , nos carros estacionados e nas cadeiras abandonadas , criando pequenos riachos que fluem interminavelmente , até desaguarem numa qualquer poça ou sarjeta perdida no meio do caos permanente.
Pela rua deserta(se exceptuarmos a constante passagem dos carros , que , pela frequência , há muito que se tornou irrelevante e inaudível) , vagueia um saco de plástico , abandonado à mercê dos caprichos do vento e da intempérie , que brincam com ele sofregamente , virando-o em mil malabarismos e tropelias , amarrotando-o e destruindo-o(!) ,lenta mas inexoravelmente.
Por vezes vê-se alguém passar a correr por entre o temporal , ansioso por chegar a um abrigo, a qualquer sítio onde possa fechar o guarda-chuva e baixar o capuz , suspirando , num alívio que até eu consigo sentir. Finalmente alheadas da chuva , essas pessoas prosseguem o seu caminho , contente e placidamente , com um sorriso momentâneo nos lábios. Um sorriso de conforto e protecção , fugidio mas feliz.
De quando em quando , o barulho monótono da chuva é trespassado pelo som estridente de uma buzina ou o ladrar sonoro de um cão , causando uma perturbação incómoda mas bem-vinda , que consegue agitar momentaneamente o tédio que se infiltrou em todos os lugares.Mas esse momento é fugaz , voltando a desvanecer-se po entre as malhas da melancolia.
Mas eis que pára de chover. O Sol conseguiu vencer o nevoeiro e espreita timidamente por entre as nuvens , batalhando por iluminar a rua ainda enevoada. Timidamente , a primeira pessoa sai para a rua , ainda com a mão estendida , receosa que aquele clima seja passageiro.Com o tempo , outras aparecem , e a rua vai-se novamente enchendo de gente e de vida. As pessoas recomeçam a passear , insegura e escorregadiamente ; limpam-se as cadeiras e bancos , numa urgência para aproveitar aquele momento de tréguas, e as pessoas sentam-se na esplanada , ávidas de aproveitar os derradeiros estertores do Sol poente , alegres pela oportunidade concedida.
Os tímidos riachos , esses , continuam a seguir pacientemente o seu caminho , esperando por um raio de Sol que os devolva às Alturas.

sexta-feira, outubro 06, 2006

Riso

Algures no Mundo, uma criança Ri.
Neste Mundo cruel e confuso, onde muitas crianças choram e sofrem sem sentido, uma criança ri.
Sem se importar com os Homens que vil e implacavelmente, maltratam e exploram milhões de crianças e outros Humanos, uma criança ri.
E enquanto essa criança ri, Homens cruéis e de coração (gelado) há muito ausente continuam a tratar os seus Iguais como tratariam brinquedos ou máquinas, usando-os insensivelmente, quais deuses repugnantes, inconscientes e despóticos.
Mesmo aterrorizados pela Culpa e perseguidos por Pesadelo, continuam a explorar, usar, violar e roubar pessoas, tirando-lhes as vidas e usurpando-lhes as vontades de sonhar.
É Muito por culpa desses Tiranos, que sugam o melhor das pessoas, deixando-as magoadas e alquebradas como se de Sombras se tratassem, que a Infelicidade, ladeada pela Dor e Sofrimento, continua a reinar na Terra.
Só assim é que a Terra pode ter entrado nesta espiral caótica e inevitável, em que se afunda cada vez mais.
Mas mesmo assim uma criança continua a rir.
É por isso que nem tudo está perdido. Porque uma criança continua a rir.

domingo, outubro 01, 2006

Retrato

Olhas para nós impotente , com esse ar reprovador e sério com que te pintaram.
Descansando sobre a mesma parede em que há tanto tempo estás , não podes fazer mais que observar , ouvir e pensar , enquanto as nossas vidas passam por ti , como um vento revolto.
Pelos teus olhos perpassaram emoções: alegria e tristeza , ternura e ódio (?) , carinho e frieza...
Talvez queiras falar connosco , partilhar a tua sabedoria imortal... Mas sabes que não podes , condenado que estás à mudez eterna!
Imóvel e inquieto , manténs-te sempre impassível perante tudo , deixando os outros selarem o teu destino , levado pela corrente das decisões ao mesmo tempo que ouvias vozes , recordavas rostos e saudavas memórias , enquanto o tempo te acariciava a tela, passando suavemente.
Sentiste Portugal tiranizado , ameaçado por armas e ideologias . Por fim , acolheste a “revolução” , indiferente.
Porque nada para ti tinha mudado . A casa onde repousas continuava com um corrupio de gente; Jovens e Velhos , alegres e tristes , Activos e preguiçosos. Todos juntos sobre o mesmo tecto e teu olhar vigilante.
Mas um dia , a família partiu , deixando-te na escuridão. É certo que voltam frequentemente , porque no fim de contas , é a sua terra-mãe. Mas há sempre aqueles períodos em que ficas sozinho numa casa quase vazia, apenas com as sombras por companhia.
E , nesses dias mudos , que farás? Será que aproveitas e sais da tua solene habitação, rodeada de castanho, abres as portadas e sentes a brisa a acariciar-te o corpo, o sol a queimar-te a cara e o rio a correr-te pelas veias? Deambularás pela casa , perscrutando todos os seus cantos e mistérios? Sairás para o Pátio para olhar para o Sol matinal e sentir o canto dos pássaros a massajar-te o ouvido? Ou continuarás na escuridão , retomando o sono eterno a que estás destinado?